SOCIEDADES LIMITADAS, O
REGISTRO IMOBILIÁRIO E O NOVO CÓDIGO CIVIL.
As
sociedades limitadas surgiram no direito inglês e no francês nos anos de 1862 e
1863, respectivamente, como forma simplificada das sociedades anônimas. No
Brasil, o projeto do então Ministro da Justiça Nabuco de Araújo que previa a
criação de sociedade por ações simplificadas foi rejeitado em 1867 pelo
Imperador D. Pedro II. A forma própria da sociedade limitada independente do
conceito de sociedade anônima surgiu na Alemanha em 1892 e influenciou
ordenamentos de outros países, inclusive do Brasil que, no ano de 1919, pelo
Decreto nº 3.708, criou as sociedades por quotas de responsabilidade limitada.
Dentre outros
preceitos, o tão conhecido art. 18 do referido Decreto nº 3.708/1919
determinava que, em casos de omissão do estatuto social e naquilo que não fosse
contraditório, seriam observadas as disposições da lei das sociedades anônimas.
A redação do mencionado dispositivo legal é a seguinte:
“Art. 18 Serão
observadas quanto às sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, no
que não for regulado no estatuto social, e na parte aplicável, as disposições
da lei das sociedades anônimas.”
Pois bem. Quanto ao Registro
de Imóveis, os negócios praticados para a formação de capital social de pessoas
jurídicas são feitos por atos de registro, com fundamento no art. 167, inciso
I, nº 32, da Lei Federal nº 6.015/1973, independente da espécie de sociedade. Apesar
da regra geral reforçada no atual Código Civil (art. 108), a escritura pública
não será necessária para formalizar este tipo de transferência, vez que há
previsão expressa em legislação especial. Assim, como sabido, o instrumento
particular de constituição de sociedade que formalize a transferência de bens
imóveis para a formação do respectivo capital social, passado pelo registro do
comércio e apresentado na via original ao Registrador Imobiliário, é o título
hábil para registro. Há, contudo, necessidade de constar a descrição dos bens
que serão integralizados no capital social da pessoa jurídica, em atenção ao
princípio da especialidade.
Até aqui
nenhuma novidade.
No entanto,
surge uma questão que deve ser refletida e debatida em razão das regras
estabelecidas pelo Código Civil de 2002.
As operações
societárias de incorporação, fusão ou cisão de sociedades anônimas, também
podem ser instrumentalizadas por escritos particulares, que envolvam
transferência de bens imóveis, são levadas para as correspondentes matrículas
nos Registros de Imóveis por atos de averbação, diante da expressa previsão
legal contida no art. 234, da Lei das Sociedades Anônimas.
Há casos, porém, em que a
incorporação de uma sociedade por outra ou fusão de duas ou mais sociedades
para a criação de uma nova, acarreta transferência de bens imóveis que passam a
integralizar o capital social das respectivas empresas. O mesmo pode acontecer
com as sociedades que são cindidas, em que parte do capital destacado
(representado por bens imóveis) é vertido para formar o de uma nova pessoa
jurídica. Nestas situações, ressalvado entendimento contrário, o ato a ser
praticado pelo Registrador Imobiliário é de registro e não de averbação, vez
que se trata de transferência de direito real para integralizar capital social,
ainda que de sociedades anônimas.
Importante,
nestes casos, é observar o destino que se dará aos imóveis envolvidos na
respectiva operação societária. Na hipótese de simples incorporação, fusão e
cisão, que não implique modificação do capital social com a integralização de
imóveis, aplica-se o mencionado art. 234, da Lei Federal nº 6.404/1976. Estas
informações podem ser obtidas com criteriosa análise do protocolo e da
justificação, artigos 224 e 225, respectivamente, da Lei das Sociedades Anônimas.
Seja por equívoco, seja por
motivação política, a Lei das Sociedades Anônimas não observou a natureza dos
atos registrários e seus respectivos efeitos. A aquisição de direito real por
ato de averbação não se coaduna com o pensamento doutrinário.
Afrânio de Carvalho afirma
que os atos de averbação são acessórios e servem para refletir eventuais
alterações sofridas pelos atos principais. “A inscrição, nela absorvida a
transcrição discrepante, cobre as aquisições e onerações de imóveis, que são os
assentos mais importantes, ao passo que a averbação cobre os demais, que
alteram por qualquer modo os principais. A nomenclatura binária condiz com a
diferença entre a principalidade dos primeiros atos e a acessoriedade dos
segundos.”.
E segue dizendo que “antes
de tudo, devem ser registrados, para se imporem ao respeito de terceiros, os
direitos de propriedade, visto ser esta o máximo dos direitos reais,
pressupostos dos demais, que, para se distinguirem, são chamados de limitados.
A propriedade tem primazia, ‘até pela razão da grandeza jurídica do direito de
domínio, que está para os outros direitos reais, como o todo está para as suas
partes, como a unidade para as frações’.” (grifou-se).
Assim, como notório, os
negócios jurídicos que envolvem a transferência do direito de propriedade, em
princípio, devem ser registrados e suas eventuais modificações averbadas,
apesar da Lei Federal nº 6.015/1973 não estabelecer critérios tão rígidos por
falta de coerência legislativa.
Utiliza-se o mesmo
fundamento legal (Lei Federal nº 6.404/1976, art. 234) para as sociedades por
quotas de responsabilidade limitada, de forma supletiva, em razão do transcrito
art. 18 do Decreto nº 3.708/1919. Ou seja, afora os atos de integralização de
capital social - que devem ser registrados -, as referidas operações
societárias de incorporação, fusão e cisão entre sociedades limitadas ingressam
no fólio real por ato de averbação.
No entanto,
necessário refletir se ainda é possível a aplicação da Lei das Sociedades
Anônimas de modo supletivo, como autorizava o art. 18 do Decreto nº 3.708/1919,
para os casos em que envolvam incorporação, fusão ou cisão de sociedades por
quotas de responsabilidade limitada.
Sempre
respeitados os entendimentos contrários, parece que a resposta deve ser
negativa em razão do que estabelece o atual Código Civil.
O art. 1.053,
do Código Civil de 2002 dispõe que:
“A sociedade
limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade
simples.
Parágrafo
único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade
limitada pelas normas da sociedade anônima.”
Não se pode
admitir que as diversas matérias reguladas pelo Código Civil deixem de se
correlacionar umas com as outras. É preciso pensar de modo uníssono. As regras
de um Livro devem ser aplicadas, no que couber, aos demais que delas
necessitem. A exemplo, se o preço estabelecido na compra e venda de bem imóvel
for superior a 30 salários mínimos, a forma do instrumento deverá ser pública
(artigos 108 e 481); a doação feita aos descendentes, ascendentes e ao cônjuge
importa antecipação do que lhes couber na herança e há a obrigação da colação
por ocasião da abertura da sucessão (artigos 544, 1.845, 1.846 e 2.002), dentre
inúmeros outros.
Neste sentido,
não se pode afastar a aplicação do regramento próprio que dispõe quanto à forma
de aquisição da propriedade naquilo que for pertinente, por exemplo, ao direto
de empresa.
Se o Código
Civil de 2002 regulou exaustivamente o direito das sociedades, com exceção
feita às anônimas que continuam regradas pela Lei Federal nº 6.404/1976, como
dispõe o art. 1.089, o modo de se adquirir a propriedade deve ser observado
também pelas pessoas jurídicas nele previstas, ou seja, transfere-se o direito
real de propriedade, de acordo com o art. 1.245, “mediante registro do título
translativo no Registro de Imóveis”.
Assim, não parece adequada a
aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas como autorizava o citado
art. 18 do Decreto 3.708/1919, vez que o Código Civil regulou inteiramente a
matéria sobre direito de empresa, especialmente quanto às espécies de
sociedades e respectivo regramento. Desta forma, com fundamento no princípio
estabelecido no § 1º do art. 2º do Decreto-Lei nº 4.657/1942, o decreto das
Sociedades Limitadas está revogado. Até então, para a constituição e
dissolução das sociedades limitadas aplicava-se, nas omissões do referido
decreto, o Código Comercial, e, para as demais matérias, se omisso o contrato
social, a Lei das Sociedades Anônimas.
De acordo com os
ensinamentos de Miguel Maria de Serpa Lopes, “pode-se dizer que a lei nova
regula inteiramente a matéria da lei anterior quando, dispondo sobre os mesmos
fatos ou idênticos institutos jurídicos, os abrange em sua complexidade”. No
mesmo sentido, Maria Helena Diniz afirma que a revogação tácita das leis ocorre
“quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que
a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior,
mesmo que nela não conste a expressão ‘revogam-se as disposições em contrário’,
por ser supérflua e por estar proibida legalmente, nem se mencione
expressamente a norma revogada. A revogação tácita ou indireta operar-se-á,
portanto, por força de aplicação supletiva do art. 2º, § 1º, primeira parte, da
referida Lei de Introdução do Código Civil quando a nova lei contiver algumas
disposições incompatíveis com as da anterior, hipótese em que se terá
derrogação, ou quando a novel norma reger inteiramente toda a matéria
disciplinada pela lei anterior, tendo-se, então, a ab-rogação.”.
Fábio Ulhoa Coelho afirma
que com o novo diploma legal “o regime disciplinar desse tipo societário é o do
Código Civil, inclusive em matéria de constituição e dissolução (CC/ 2002,
arts. 1.052 a 1.087). Quando omisso o Código Civil quanto a esse tipo societário,
a disciplina supletiva poderá ser a da sociedade simples ou da anônima,
dependendo da vontade dos sócios”.
Por ser a forma de aquisição
da propriedade norma cogente ou de ordem pública, os sócios não podem decidir
pela aplicação da Lei das Sociedades Anônimas, nem deliberar modo diverso nos
atos constitutivos, sob pena de nulidade do respectivo ato jurídico. Admitir o
contrário é atribuir à manifestação da vontade autonomia que a lei
expressamente limitou ou não concedeu.
Não há mais complexidade
sobre qual diploma legal deverá ser aplicado para as sociedades limitadas.
Aplica-se o novo Código Civil. E, como tal, todo e qualquer título que
consubstancie a aquisição do direito de propriedade deve ser registrado no
Fólio Real (de acordo com o termo utilizado pela lei civil - o melhor seria que
o legislador tivesse encampado o conceito do termo inscrição indicado por
Afrânio de Carvalho, para designar todo e qualquer “assento principal, seja
transmissivo da propriedade, seja constitutivo de ônus real”. Contudo, não o
fez).
Portanto, admitindo-se como
revogado o Decreto nº 3.708/1919 (que sequer tratava sobre a forma de aquisição
da propriedade) com o advento do novo Código Civil, na hipótese de ocorrer
transferência de patrimônio imobiliário nas operações de incorporação, cisão ou
fusão de sociedades limitadas, o documento hábil para ingressar no Registro
Imobiliário será o correspondente ato societário passado pela Junta do Comércio,
e o ato a ser praticado é o de registro e não de averbação, como outrora
praticado com subsídio no Decreto nº 3.708/1919, não mais em vigor como
referido, e na Lei das Sociedades Anônimas.
Alexandre Laizo Clápis é Oficial
Substituto do 13º Registro de Imóveis da Capital de São Paulo
04/05/2020 » INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 99, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2019 |
09/04/2020 » SANCIONADO COM VETOS TEXTOS DA MP DA RENEGOCIAÇÃO DAS DÍVIDAS AGRÍCOLAS |
08/04/2020 » LEI Nº 13.986, DE 07 DE ABRIL DE 2020 - AGRONEGÓCIO |